E agora... isto!

Tenho medo

Tenho medo. Acordo durante a noite e tenho medo. Fico sentado na cama a olhar para o escuro e penso que era apenas um sonho mau. O mundo parou, a nossa vida acontece agora dentro da nossa casa. Saímos do trabalho à pressa e não sabemos quando vamos voltar. Deixámos para trás as nossas coisas, as coisas dos nossos, as coisas dos que servíamos. As salas ficaram vazias e as ruas estão desertas. Lá fora morre gente, demasiadas pessoas a quem a vida corria bem. Apenas se queixariam da normalidade dos dias ou da correria da vida. Agora morreram. Tenho medo…

As famílias não se veem, falam pelos fios ou falam sem fios. Temos saudades uns dos outros e não nos poderemos abraçar amanhã, ou no dia seguinte. Tenho dificuldade em lembrar-me dos olhos da minha mãe, do sorriso do meu pai que vai sempre sorrindo sem medo, mesmo quando lhe dizemos que deveria ter medo, mas ele não tem, e continua sorrindo. Sei pouco de ficar longe dos meus amigos e agora não sei como fazer para fazer de conta que os vou ver amanhã.

As igrejas estão vazias. Tenho o cabelo grande e desfaço a barba todos os dias como se dessa rotina dependesse a salvação do mundo. Não me confessei antes disto e agora isto. Não sei o que teria eu para confessar ao padre sobre estes dias em que a nossa vida ficou cancelada. Não me sinto virado do avesso, sinto-me apenas avesso a esta forma de viver sem sol, nem luz, nem calor dos outros, nem cheiros de cidade, nem abraços da paz, nem apertos de mão.

Não podemos estar em grupo. Tantos grupos que eu tenho! Esses grupos desistiram de nós, apagaram-se de dia e de noite, correm agora apenas nos canais digitais e na força da nossa invenção. Nunca mais vi um jornal nem toquei a nenhuma campainha. Não comi fora nem bebi água em nenhuma fonte. Não fui ao cinema com os meninos nem levei a menina a passear.
Chego a casa antes de ter saído e almoço sempre no mesmo lugar onde janto. Não visto roupa bonita nem que me fique bem. Visto. Aceno à janela e de vez em quando vou ver o meu carro parado no mesmo lugar de sempre. Acendi uma vela ontem e assim, em seu torno, vi refletido nas paredes as sombras de um quadro meu que me foi oferecido por eles no meu aniversário. Vi a dançar no escuro o meu rosto desenhado a carvão e chorei.

Tenho medo. Vi aquele meu rosto escuro de linhas marcadas na sombra que a luz me dá, e tenho medo de não me reconhecer quando sairmos deste mundo-casa e voltarmos a deixar de ter medo dos medos que a vida nos traz todos os dias…

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