Menina dos Fósforos
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Coração queimado |
Naquela caixa de cartão numa qualquer rua da cidade grande,
não estava uma menina sozinha, estava todo o mundo sozinho, procurando
desesperadamente a luz. A porta de casa que se fechou atrás dela, não foi a
porta de sua casa, foi a porta de nossa casa quando não encontramos lá espaço
para os outros. Os fósforos riscados em sofrimento e desespero, não são tristeza
pelo fim, ou pela solidão ou até pela morte, são antes frieza porque o escuro é
feito por nós, o frio é trazido por nós, o desespero somos nós que o geramos
nos outros e as ruas de ninguém estão cheias daqueles a quem dizemos que não
têm lugar na nossa vida.
A menina dos fósforos dói, fez-me chorar compulsivamente,
sentado nas bancadas da escola sem ninguém ter visto. O escuro ajuda-nos sempre
quando não queremos ser vistos, mas é também o escuro que revela as nossas
maiores fraquezas e medos, apertos e segredos, convulsões de tristeza e lampejos de simplicidade. O chão frio e molhado destas noites de inverno, está
pejado de crianças com família que “morrem“ sem terem sequer saído para a rua. Estão
sozinhas. Suas mãos cheias de tudo, repletas de coisa nenhuma. Seus quartos
emoldurados com diversões mas vazios de gente que ama. As meninas e meninos dos
fósforos hoje não vivem numa qualquer rua onde passam charretes de cavalo, ou onde
as damas têm vestidos compridos e os cavalheiros usam chapéus altos. Hoje, os
fósforos que as crianças riscam, são gritos por amor, por carinho, por tempo e por
espaço.
Lá fora da nossa cabeça ouve-se a música. Os olhos estão
fechados e a menina dos fósforos rodopia sobre ela própria, sorrindo, tonta de
felicidade pelo aperto suave de um abraço verdadeiro. Rodopia no ar e do alto
das suas botinhas quentes, estende os braços ao céu. Posso ainda ver os seus
dedos espreitando pelas luvas cortadas pelo desgaste. Rodopia entre crianças
que brincam como ela nunca brincou, entre cestos de flores, entre a chuva que
cai do vazio e lhe preenche a tristeza. Rodopia e canta sem sequer se ouvir um
som, contínua de olhos fechados, de braços ao alto. Rodopia e cai ao chão,
sorrindo perde a vida para a voltar a encontrar no nascimento do Menino que nos
convida a ser Presépio.
A menina dos fósforos
dói, fez-me chorar compulsivamente porque sentado nas bancadas da escola
continuo a fazer de conta que as crianças são todas felizes, que o mundo é
apenas uma sala de ensaios, que as famílias são todas perfeitas, que o Natal é
quando o Homem quiser… o Homem não quer! A caixa de cartão continua lá na rua.
Fechamos a porta de casa e se o frio não entrar parece que também não entra a
dor.
A menina dos fósforos dói, agora, neste momento, porque as
crianças continuam a riscar fósforos, um a um, e o escuro é feito por nós,
escuro esse onde a luz de cada fósforo riscado é apenas um pedido de ajuda, um
sinal que lá fora de nossa cabeça continua a tocar uma música que não ouvimos,
mas que a menina continua a cantar em silêncio, até cair sem vida em nossos
braços…
Foto de Cristina Ribeiro.
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