Correr é uma estória contada com a vida

 



Do Templo de Évora ao Castelo de Montemor

A vida vale a pena quando tu tocas com os pés na estrada, mas é o coração que corre por ti. Depois olhas em redor de ti mesmo, cruzas a vista e só encontras abrigo. Amigos de ontem e de hoje, pessoas que habitam na tua vida, mesmo que seja uma vez por semana. Por eles, e por ti, e por tudo o que crescem juntos, mudas a vida, mudas os planos, reinventas-te e trocas muitas vezes o que parecia já estar definido. Até no silêncio pedes que a família te entenda, que aceite, que queira como tu queres, que sonhe, que se entusiasme como tu, e depois sais de madrugada com a mochila nas costas e o caminho no pensamento. És feliz a correr, não consegues evitar isso...

Correr em grupo é muito mais que atletismo, seja na estrada, seja nos trilhos, seja de noite, de madrugada ou de dia. Correr em grupo é uma prova de vida num mundo onde tantos parecem já ter deixado de viver efetivamente, continuando a sobreviver, embalados com as pressões quotidianas, com os faz-de-conta-que-sim e com os deixa- lá-ver-se-não-me-entalam. 

Correr em grupo é uma decisão que não se toma, mas que vai tomando conta de ti, te vai moldando, vai definindo quem tu és, vai desenhando o teu perfil que estará sempre em articulação com os que te acompanham. Correr em grupo é uma forma de estar, uma constante superação, uma aprendizagem contínua, uma diversão garantida. Não te trata apenas de correr, trata-se de viver em movimento.

Os amigos desafiam-se a serem melhores. Também na corrida, cada desafio é uma esperança de que alguém chegue mais longe, chegue mais rápido, chegue melhor. Sempre que nos desafiamos, parece-me que imediatamente não pensamos só em nós, pensamos em todos aqueles que estão connosco e a quem queremos abraçar no final da etapa, porque fizemos caminho juntos. Foi assim que nasceu este desafio, uma coisa entre amigos de longa data, que são capazes de desafiar outros amigos deste tempo e que quando se dá conta, está um programa preparado que só acaba quando todos estiverem bem, seguros, juntos, a terminar um percurso de 31 quilómetros.

Entre o Templo Romano de Évora e o Castelo de Montemor-o-Novo vai uma distância que só se consegue vencer quando cada um acredita e todos assumem. Quanto mais falas do assunto, mais te apercebes de que vai acontecer. E agora? Onde me vou eu meter com isto? E se eu não aguento? E se fico pelo caminho? Mas eu quero tanto ir, quero estar lá, quer experienciar aquela sensação única de me doerem as pernas e ainda assim continuar a sorrir. De não sentir os calcanhares e dizer a quem está a meu lado de que aqui não se deitam toalhas ao chão. De me latejar a lombar e querer ainda assim encorajar o outro que está mesmo ali, aguardando um incentivo.

Somos grandes quando corremos juntos, que não tenhamos qualquer dúvida disso. Somos grandes quando colocamos o outro nas nossas prioridades. E foi isso que honrou também quem nos apoiou, quem nos facilitou o caminho, quem nos tratou com carinho e preocupação, quem nos recebeu, quem nos garantiu um abraço na chegada e um duche no final. Quem nos alimentou e quem nos disse sempre que já estava ganho. Somos grandes quando nos respeitamos e entendemos os limites de cada um, e pegando nesses limites, reconvertemos o esforço numa passagem mais leve, num passo mais calmo, numa presença mais próxima.

Podia contar-vos que, homens e mulheres já feitos, saíram pelas 6 da manhã do Templo Romano de Évora e que para isso, na noite anterior, foram descansar mais cedo, e que as suas famílias ficaram preocupadas e que todos dormiram mal com o entusiasmo. Podia contar-vos que saímos da cama sem ouvir o galo a cantar, sem movimento nas ruas, sem certezas, mas não duvidando nunca. 

Podia dizer-vos o que pensam as pessoas que passam por nós. Podia dizer-vos o que nós achamos sobre isso (nada). Podia contar-vos que o caminho pesa, mas que o corpo ganha uma leveza que só se repete no fim. Podia dizer-vos que muitas vezes choramos no final e que nos abraçamos sem saber de quem são os braços que encontramos naquele momento (como se isso interessasse).

Podia dizer-vos que durante o percurso, falamos da vida, e dos medos, e dos ganhos e das vitórias de cada um. Podia dizer-vos que a Maria João ganhou uma batalha de vida e que o Daniel hoje seguia preocupado. Que a Dina aguardava o marido e os filhos e que o Zé Luís só queria chegar ao fim e por isso segurava o ritmo. Que a Patrícia estava tão feliz, outra vez, tão feliz. 

Podia contar-vos que o Hugo seguia firme, em silêncio e que o Teigão e o David adoram falar, sem nunca parar, e agora tenho saudades de os ouvir. E as fotografias, meu Deus, tantas. Uma lágrima da Eugénia, uma palavra do Nuno Júlio. O João Canento que não parava no ninho. O sorriso miudinho da Elsa que lá está mesmo quando não sorri, a companhia do Valter na pior parte do percurso, a emoção do Meca que não dá para disfarçar, a euforia do Delgado que não se contém, a presença discreta do Filipe e da Mónica lá na frente.

Depois contava ainda que no caminho o apoio foi qualquer coisa de muito bom, e o tempo, e a temperatura e os ânimos de quem nos apoiou sempre. Que a Susana se preocupa a sério e que o Nuno Marques sofreu por não correr, quem me dera que tivesse corrido. Que o Carlos estava radiante, mesmo sem ter dormido toda a noite e mais o Marco e a Sofia que se juntaram a nós. O Serra foi sempre na proteção, não se dando por ele. 

Depois emocionava-me quando vos contasse que ao chegar ao Castelo, não sem antes enfrentar o quebra-costas, a voz do Paulo Canas fazia com que tudo parecesse mais fácil, como que chegando a casa, com uma brisa no rosto e um coração a despedaçar-se com a emoção. Aqui chorei eu, não faz mal, haveria de me calar depois, no acolhimento pela malta de Montemor, no banho quentinho nos Bombeiros e no almoço tão bem vivido na Pedrista, mais uma casa que nos acolhe sempre tão bem.

Podia dizer-vos tantas coisas. Podia dizer-vos tudo isto, mas não iriam entender nunca, a não ser que enfrentassem com coragem o dia em que ao decidirem correr (viver), decidem que isso se faz melhor em grupo. Quando partilhamos a jornada, o caminho não custa nada a mais, tudo o que dói, passa a doer menos e assim se vai levando a vida, entre os Templos que escolhemos ser e os Castelos onde queremos chegar…

Comentários

Mensagens populares