Deixei-me Seduzir

JC - O Sedutor

Era noite escura e chuvosa. As paredes frias de mármore do Seminário de Vila Viçosa reluziam no silêncio da noite. Todos dormiam e eu estava sentado nos degraus a olhar os claustros, a olhar o céu, a olhar a vida. Tinha vindo tantas vezes ali e continuava a ficar preso no Cristo Sedutor da SGT. Tinha que ir lá de novo, outra vez antes de adormecer. Entrava com passo firme e mesmo sem acender a luz, Ele acendia-se para mim. As cadeiras de pau quedavam-se mudas e vazias, prontas para o dia seguinte. Acercava-me da parede, olhava o quadro sem cor e passava a mão naqueles olhos magníficos a preto e branco.

As horas escorriam devagarinho como a humidade pelas paredes, o frio lembrava a dureza dos dias e as histórias de vida que ia desfilando à nossa frente aqueciam os corações entre a vertigem do medo e a glória do encontro em nós. Tudo estava pronto, mesmo quando alguém se esquecia de um ou outro pormenor, ele aparecia resolvido. Lembro a minha primeira chegada, vindo do fim da minha rua, do fim da minha aldeia, do início da minha vida. Lembro das músicas, dos cânticos, dos primeiros acordes. Lembro-me do entusiasmo de tantos, da desconfiança de muitos, da amorfidade de alguns. Lembro-me das camas que desmanchava com o João e o Fernando, dos post-it do Xico e da Estela, do terço do meu irmão Pedro, da minha dezena que aparecia na mesinha da SGT para dar força a quem testemunhava. Lembro dos bolos, lembro-me de não dormir e de não ter sono, de falar e de sorrir. Lembro-me da perna partida do Couto e dos filmes que víamos na noite antes de tudo começar. Lembro-me da Carla, do Orlando, da Ana Patrícia, do "Belo", do Cameirão. Lembro-me do abraço do Carlos que ainda hoje me chega intacto. Lembro-me da Raquel, das Gémeas, do tipo que queria fugir, do tipo do poncho, do tipo da pistola e de todos os outros que se cruzaram comigo. Da Milé, da Neuza, da Clara, do Amadeu e do tipo que queria vender droga. Da Susana, do Der, do Raul e da Lúcia. da Isabel e da Jesus. da Cristina, da Ana e da Ana Beatriz.

Lembro-me de Maria, doce presença em nós e da forma como a Susana e a Patrícia no-la mostravam. Lembro-me da Lena, do Ricardo, do Quinó, do Zé António e do Ilídio. Lembro-me do Padre Simões. Lembro-me de a nossa vida pegar fogo pelas palavras do Manecas, lembro-me da doce canção que a Rosa cantava com a sua vida. Lembro-me do riso contagiante da Lena Simões. Lembro-me de querer estar sempre na capela, no mesmo simultâneo em que alguém abria a sua vida e a dava a conhecer levando outros a experienciar essa descoberta em si. Lembro-me do Rente, do Xavier, do Gone e do Canoa. Da Olga, da Inês e da Vera. Lembro-me de estarmos perante o Santíssimo e tudo à volta ser vazio, ser o Cosmos que nos abraçava enquanto as bátegas de água caíam na rua. Lembro-me de Servir sempre, de ser Ministro e lembro-me do dia em que o Lobo teve que me comprar 4 pares de meias azuis escuras. Lembro-me de Jesus viver ali e de o levar para o meu carro quanto regressava a casa em lágrimas. Lembro-me das passagens de ano em Reguengos e da oração constante, os toques às 19.00, as entrevistas, o fórum, os 20 anos e os 25 anos, e os Ao Lado, e os Pós e a vida que nos corria nos braços.

Deixei-me seduzir por um jovem Jesus que, pregado numa cruz de papel escrita a carvão numa parede branca, faiscou a minha vida e me transformou no que hoje sou. Um jovem Jesus com muitos anos de vida que me colocou as mãos nos ombros, me olhou nos olhos e disse: deixa-te seduzir! Farei de ti pescador de Homens. Passam agora 20 anos de uma experiência de Convívio Fraterno, 40 anos depois de terem surgido na Diocese de Évora. 

Deixei-me seduzir e hoje, sentado em frente a este monitor, volto a entrar na SGT, quando todos dormem e sem acender a luz, acendo Jesus outra vez na parede da minha vida. 

Tudo para além disso é vida…e essa, eu não perdia nem por nada…

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