Apaixona-te

Apaixona-te

Era noite de verão num calendário de primavera. Calor na rua, som de grilos e rãs. No dia seguinte seria o primeiro dia do mês de Maria e Ela ali estava, sobranceira sobre a sala vazia, esplendorosa, altiva e sossegada, mirando-me do alto do seu altar improvisado. Foi por ela que vim, será por ela que vou, ao seu encontro, a um encontro onde quero chegar sem pressa. Sentei-me na primeira cadeira da primeira fila, não poderia ser de outra forma. Não conhecia quase ninguém e assim ocupei a cadeira, quedo, observando o espaço. Encostei o ombro a uma estante que fechava o meu recanto, enquanto me preparava para ouvir o que ali seria dito, tirar notas quem sabe. Na divisória da estante à altura dos meus olhos, um único livro encostado na madeira branca: o homem duplicado… apaixonar-se é duplicar-se o homem.

O Padre prepara-se para usar a palavra, mostra um slide na parede que diz apenas APAIXONA-TE. Um murro no estômago e ele ainda não tinha dita nada, nem eu tinha tido tempo para me sentar direito. Apaixona-te, de outra forma nada disto fará sentido. Nem o caminho, nem o tempo longe da família a uma distância que aumentará a cada dia que caminhas com os teus pés na estrada, na vida, no tempo que te ausentas dos teus para te encontrares. Apaixona-te, de outra forma não saberás sequer o que te está a acontecer agora, nesta sala, naqueles olhos de Maria mais vivos que alguns dos dias que se podem viver, nem tomarás conta de ti, nem dos outros que contigo vão, nem dos que deixas à porta de casa a acenar para ti com uma lágrima a cair rosto abaixo enquanto tu desapareces rua acima.

Apaixona-te e tudo fará sentido. No caminho, na tua vida, no teu trabalho, nos teus afazeres, no tempo que dás aos outros, no que os outros te dão de tempo. Apaixona-te por cada certeza, por cada dúvida. Apaixona-te por ti, quere-te mais a ti, ouve-te, abraça-te por dentro e aconchega-te no chão duro a que chamarás cama. Apaixona-te por cada passo dado, por cada melodia, por cada partilha. Apaixona-te a sério e assim conseguirás amar logo depois. Apaixona-te por todos os outros, apaixona-te pela dúvida de se serás capaz, pelas dores, pelo cansaço. Apaixona-te pela tua condição de peregrino, pelo dia e pela noite, pelo acordar e pelo adormecer.

Apaixona-te e faz de ti essa entrega constante que urge na vida de quem olha para ti. Apaixona-te e luta por essa paixão derradeira, corre atrás do que queres, e se pelo cansaço já não conseguires correr, apaixona-te pelos passos pequenos que darás, apaixona-te pela vontade de que os outros venham na tua direção. Apaixona-te e abraça-os à chegada. Apaixona-te, deixa-te levar, faz o silêncio que sabes que importa, concentra-te na biqueira dos sapatos e de vez em quando olha em teu entorno, coloca os olhos no céu e volta a apaixonar-te…

Apaixona-te mais pelo caminho do que pela chegada ao destino, só a viagem é garantida.

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