Deus "chama". Nós somos deserto.

Tempo de 40

Deus não vive preso em nós, por muito que o queiramos preservar no peito, Ele é livre e não se contenta com o que possamos alcançar, quer que aspiremos a mais, a melhor, a tudo. Quer isso não para si próprio. Quer isso para ti e para mim. Quer isso para um mundo de gente salva um dia pela entrega do seu Filho Único. Quer que nós possamos ir com Ele. Quer isso porque é essa a sua natureza. Deus não nos quer presos em nós…

Jesus, o nosso JC, foi um Homem entre os Homens, crescendo com as privações daquele tempo, mas sempre com os olhos postos no nosso tempo. Ele nasceu para nos alcançar e morreu porque o deixámos ir. Tinha que ser assim! Mas hoje já não tem que ser assim. O tempo que passou entre esses dois momentos foi um tempo de deserto. Esse deserto somos nós e é em nós que Jesus se renova para nunca mais ser esquecido. Hoje, a cada dia da tua e da minha vida, não há mais tempo para morte, a vida venceu ontem e continua a vencer hoje. Deus quer que vivas e que com essa vida faças os outros viver…

Um dia, num particular momento das nossas vidas, em épocas distintas e tão diferentes, nos últimos 40 anos de um Portugal em mudança e de um Alentejo com ritmo próprio, o mesmo Jesus Cristo, de olhar Sedutor ainda hoje “vivo” na SGT, saiu do nosso deserto e convidou-nos a deixar correr a Fé. Levou-nos a um Convívio Fraterno. Pegou em nós ao colo, como tantas vezes faz, e levou-nos ao topo do Mundo para que pudéssemos ver os rios de leite e mel, para que pudéssemos ficar no cimo do Sicómoro com o Zaqueu, para que pudéssemos ajudar Lázaro a levantar-se, para que pudéssemos olhar nos olhos a Samaritana, para que pudéssemos abraçar Maria Madalena, para que pudéssemos ver o dia em que o cego viu, o dia em que o paralítico andou. Jesus pegou em nós e levou-nos a ver o Mar da Galileia onde os pescadores se tornaram Igreja, levou-nos a caminhar nas águas e a separar o mar, mostrou-nos o partir do pão e a negação de Pedro, pegou em nós e colocou-nos na entrada de Jerusalém porque era festa. Jesus mostrou-nos as palhinhas e como podem estar quentes como o nosso coração, levou-nos a ver Belém, a seguir a Estrela. Jesus levou-nos a Canã e fomos vasos de barro nas Bodas da água-vinho.

Jesus levou-nos a sentir na nossa pele a rugosidade da corda de Judas e a atrocidade da coroa de espinhos, a frieza dos pregos nas suas mãos, batidos por um martelo invisível que todos empunhamos ainda. Jesus levou-nos a sentir a violência das águas que abalaram a Arca de Noé e o silêncio cantado do Cântico dos Cânticos. Somos deserto porque temos espaço para ser melhores mas nem sempre queremos. Não estamos cheios de Deus, mas por vezes estamos cheios de nós e isso é o maior vazio a que se poderá chamar deserto.

Fomos chamados a ser Convívio Fraterno e fomos dizendo que sim, deixando tantas vezes sem notar, que a nossa vida fosse mudando. Fomos também mudando a vida de tantos, de outros aqui trazidos pela mesma mão, carregados pelo mesmo colo, firmados no mesmo chão. Década após década, convívio após convívio, a chuva e o calor entrecortados pelo avanço dos tempos, pelo desenrolar dos dias, dos meses, dos anos. Pessoas novas a cada encontro, cheias de vida, cheias de liberdade para amar, cheias de sonhos, cheias de luz e cheias de querer mudar o mundo. Outros chegaram cheios de sombras, cheios de dúvidas, repletos de incerteza. O Movimento ganhou expressão, os espaços foram-se enchendo a pontos de não caber mais ninguém. Era chão cheio, alma a transbordar.

E lembram-se dos vossos olhos no dia em que chegaram? Lembram-se da maneira como olharam tudo à vossa volta e como ficaram atentos ao espaço, às pessoas, aos movimentos, aos sons, às sombras, às palavras, aos gestos? E lembram-se dos vossos olhos no dia em que voltaram para casa? No dia em que encerraram o Convívio e reiniciaram as vossas vidas? E lembram-se do primeiro 4.º dia e da ausência dos cânticos, das orações da manhã, das refeições partilhadas, dos diálogos particulares, das capelas de equipa? Lembram-se de não conseguirem adormecer sem enviarem um toque, uma mensagem, de fazer uma chamada com aquela pessoa que não nos sai do coração? Lembram-se de estar na Eucaristia da vossa terra depois do Convívio e sentirem o coração numa montanha russa de emoções? E lembram-se de se sentirem tão incompreendidos pela família, pelos amigos, pelo vosso namorado ou namorada?

Eu lembro-me como se fosse hoje. E os meus olhos continuam a poder viver tudo isto porque um dia disse que sim e nunca mais deixei de fazer o meu Convívio Fraterno. Não levei Jesus comigo, foi Ele que me levou consigo para uma dimensão cheia de gente, cheia de missão, cheia de encontro, cheia de entrega.

Não levei Jesus comigo, foi ele que pegou de novo em mim e me apresentou ao mundo repleto de discípulos, de pecadores, de missionários, de perdidos, de salvadores e de esquecidos.

Hoje, voltando aqui, nem eu nem tu estamos sós. Jesus trouxe-nos outra vez e lembrou-nos que não vive preso em nós.

Jesus deixa-nos presos porque nos liberta, e porque com a nossa vida nos ensina a não morrer nunca. Continuamos a mostrar um mar de amor no deserto que de quando em vez nos bate à porta.

Aqui estamos Senhor.
Tu chamas “em nós” durante todo o nosso tempo, porque nós somos deserto e tu és a água viva.

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