Até amanhã Catrenita

Era cedo
Era cedo e ela deixou-nos. Era frio numa manhã que se colou no nosso corpo e nos enregela por dentro. Catarina era doce, meiga e olhava para mim sempre com a desconfiança marota de quem se defendia. Gostava tanto de me meter com ela, de a desassossegar quando ela se enroscava do sofá e ficava a observar, enquanto parecia dormir. Tinha uma voz pequena, envergonhada. Falava enquanto sorria e dizia palavras abafadas pelos seus gestos miúdos. Era cedo e ela deixou-nos. Era frio naquela manhã em que nos deixa com saudades da sua presença.

Fui vê-la na sua terra, onde nunca tinha ido antes. Estava tudo envolto num silêncio tão triste como que se o mundo tivesse acabado ali, naquele Alentejo de casas baixinhas e nevoeiro denso. As ruas não tinham gente e a gente não tinha ruas por onde fugir daquele momento. A porta assuma-se lá ao fundo e Catarina continua a aguardar serenamente por nós, sem pressas, como fazia sempre. Catarina era doce e meiga. Será sempre doce e meiga. Será sempre na minha memória uma menina que veio cedo demais, partiu antes do tempo que tinha e nos deixa numa manhã cedo, lembrando que o tempo vale tudo.

Catrenita estava ali. Com ela os seus, nas suas dores, ainda sem saberem no que acreditar. Há um abraço demorado com o pai, uma dor que me chega ao peito vindo do seu, uma falta de ar, um pedido de ajuda, um não sei quê de tira-me daqui por favor...A mãe olha-me, grita para mim um suspiro que me encontra já nos seus braços, um obrigado por teres vindo, um vieste de tão longe, sim, para ver a Catrenita, para olhá-la mais uma vez, doce e meiga, serenamente à nossa espera, como fazia sempre. Junto a si a mana. Nas suas preocupações de todos os dias, de sempre, desde o dia em que Catarina havia nascido pequena demais, um soluço sem fim, uma lembrança das vezes em que a protegia mesmo à distância...era a sua maninha...

Era cedo e deixou-nos. Não tinha mais tempo para ficar por aqui, neste Alentejo de longe, cheio de gente com tempo a mais. O tempo não é nada. E ela ali estava, doce e meiga, esperando que eu a desassossegasse mais uma vez, que provocasse nela aquele sorriso miúdo, envergonhado e seu, enquanto dizia palavras abafadas pelos seus gestos miúdos. Não fui capaz. Era cedo e tivemos que a deixar ir...

Até amanhã Catrenita

Comentários

  1. Texto maravilhoso e pungente . Uma homenagem tão bonita e tão sentida. Um beijinho, Nuno.

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