Chocolate, Trigueiro, Queque

Histórias a Frio
A rua prende pessoas que não se conseguiram prender à vida. Recebe-as de becos abertos para de seguida lhe erguer muros e abrir fachadas profundas no âmago. A rua mata porque os conserva vivos, numa dimensão de sofrimento que ultrapassa o sensível, o dizível, o analisável, o verificável. A rua trucida gente que já não vive, muitas vezes, que não se lembra de ter vivido algum dia, que desiste todos os dias de sonhar viver. Sobrevive-se na rua, não sabendo quem se é nem que dia é hoje…

O “Chocolate” é negro. Chegou de outra cidade movimentada demais para os seus braços. Já não dava à conta no rodopio que o álcool colocava na sua cabeça. Foi na rua que se achou antes de partir. Quando chegou ficou na rua. Sentou-se. Pôs-se em pé. Voltou a sentar-se. Ajeitamos os colchões e os cobertores que lhe calhavam. Dissemos o que tínhamos para dar e pedimos que descansasse. Quis dormir. Assim fez. Não sei se sonhou, se viveu outra ou a mesma vida, se voltou a ser quem era ou se conseguiu fugir no pesadelo dormente de uma vida real, presa em si, moribundamente sossegado estava. O “chocolate” saiu cedo, com a mesma altura que trazia e a mochila composta com a “bucha” para a manhã. O “Chocolate” desceu a rua, olhou para trás uma vez e acenou. Ainda o ouço a dizer “brigado”.

O “Trigueiro” é alentejano. Chegou de outro Alentejo imenso pela vida imensa que nunca conseguiu viver. Família partida em pedaços, mortes, barracas em Lisboa, trabalhos nas obras, drogas duras nos braços, no corpo, na alma dormente para não sentir mais nada. Discurso firme, consolidado, coerente. Chegou de noite, depois da ronda pela cidade e da missão cumprida, esperamos por ele no centro de emergência. - Ao que cheguei eu?!? Queremos lá saber disso agora homem. Onde chegaste “Trigueiro”? A um camalho e algum conforto que te fugia faz dias. Trás as tuas coisas. A vida vai resolver-se, pelo menos por esta noite. A vida ia com ele, disfarçada ainda com o cheiro a lavado, mas olhando para trás e sorrindo nas suas costas, esperando pela próxima recaída para voltar a sacudir a realidade, transformando os dias numa misturada de sentimentos…

O “Queque” é da beira. Chegou faz dois pares de anos à cidade. Tinha a vida toda em si quando chegou. Trabalho, carro, família, dinheiro, vícios. Tudo na medida certa compunha a sua existência. Chegou junto da carrinha de óculos escuros, arranjado, sapato limpo. Em torno da sua cabeça um capacete de aguardente ou bagaço. Não nos via e nós ali. Depois veio. Olhou-nos e sofreu com isso. Pediu ajuda sem pedir, tremendo. - Ao que eu cheguei!!! Nem Deus me vale agora!!! Roubaram-me a mala, o chapéu de golfe, o pc. Já foi embora para outra cidade, agora que escrevo aqui. Levou a mala sem o chapéu de golfe mas com um chapéu que lhe deu o “Vereador”. Lá dentro roupa, e pouco mais. Parte para um centro e programa terapêutico. Diz que um dia voltará para ver de novo a cidade, para agradecer o “chapéu”, para mostrar a nova vida que ambiciona.

Chocolate, Trigueiro, Queque e outras histórias presas em ruas, barracas, tendas, carros, ruínas, contentores e arcadas. A rua prende pessoas que não se conseguiram prender à vida. Recebe-as de becos abertos para de seguida lhe erguer muros e abrir fachadas profundas no âmago. Vou encher de novo a carrinha de cobertores…

Comentários

Mensagens populares